Poucas coisas são tão caraterísticas de Portugal, e do Porto em particular, quanto os azulejos. De casas a igrejas e prédios públicos, os edifícios revestidos são uma marca-registrada que atrai turistas do mundo todo – e que serve de cenário para toneladas de selfies todos os dias. O que pouca gente se dá conta é que, por trás do colorido altamente instagramável das fachadas portuguesas, há séculos de uma história cheia de altos e baixos, curiosidades e características que foram se alterando ao longo do tempo.
E bota tempo nisso. Os primeiros registros de azulejos na Península Ibérica datam do século XV, na Espanha, muito provavelmente trazidos pelos mouros. Em Portugal, nessa época as peças ainda eram importadas e, por isso, utilizá-los em uma residência era sinônimo de status financeiro e social. Vale lembrar que desde o século XIII já se utilizavam os mosaicos vidrados – o tataravô dos azulejos – no revestimento de pisos em construções portuguesas. Para chegarem às paredes – e aos formatos que conhecemos hoje – os azulejos percorreram um longo caminho.
É só na segunda metade do século XVI que artistas locais começam a trabalhar no que hoje se chama de azulejaria portuguesa. Embora as oficinas lusitanas ainda fossem bem inferiores em termos de qualidade às holandesas, espanholas e italianas, já nesse período o revestimento passa a se tornar um traço marcante da cultura portuguesa.
Parte dessa importância se deve ao rei Manoel I que, numa viagem a Castela, em 1498, conhece a azulejaria de Sevilha, então um dos maiores centros produtores do mundo. Empolgado com o que vira, ele manda revestir seu palácio em Sintra com mais de 10 mil azulejos – dos mais variados padrões e técnicas – vindos diretamente da Andaluzia para o porto de Belém.
Quando e por que os azulejos se tornaram azuis?
No século XVII, todo o colorido e a exuberância barroca dão lugar ao azulejo em tons de azul, inspirado na porcelana chinesa – o que na época era sinônimo de qualidade e requinte. Mas não era só uma questão de moda: além de o tom se comportar melhor durante a queima, a adoção de uma cor única também ajudou a baratear o processo. Nessa época a concorrência holandesa ainda era muito forte e, para ganhar espaço e conquistar a clientela, a indústria nacional começou a investir em artistas com formação em pintura.
Em 1755, uma catástrofe natural acelerou os rumos dessa história: um terremoto (seguido de um tsunami e, acredite se quiser, de um incêndio) praticamente destruiu Lisboa e exigiu uma solução rápida e barata para a reconstrução em massa de casas e prédios públicos. A indústria de azulejos passa a criar uma série novos padrões, que ficam conhecidos como pombalinos, em referência ao Marquês de Pombal – o controverso primeiro-ministro que teve papel importante na renovação da cidade. Por conta disso, os azulejos perdem o caráter elitista e passam a se propagar em larga escala país afora.
Pulando para o começo do século XIX, as invasões napoleônicas que ocorreram a partir de 1807 atravancaram a economia portuguesa, e a indústria dos azulejos não ficou de fora da devastação. Mas o estrago durou pouco, e a partir da década de 1830 ela renasceu, em parte graças à ascensão da burguesia industrial e das encomendas brasileiras – se a utilização de azulejos portugueses já era moda no Brasil, um acordo comercial assinado entre os dois países, em 1834, fez a demanda aumentar ainda mais. Além disso, portugueses que enriqueceram na América e voltaram à terra natal podiam investir nas fábricas e na restauração de edifícios.
Azulejos em fachadas de igrejas: um fenômeno exclusivo do Norte de Portugal
Até então confinados ao interior dos imóveis, os azulejos começam a dar as caras também do lado de fora de residências e prédios públicos. E, na virada para o século XX, o norte de Portugal assiste a um fenômeno que não ocorreria em nenhuma outra região do país: a utilização de azulejos para revestir o exterior de igrejas e capelas. Assim, muitos prédios religiosos até então “pelados” começaram a ganhar novas fachadas, especialmente em Aveiro e no Porto. É o caso das igrejas de Santo Antônio dos Congregados (1929), de Santo Idelfonso (1932) ou da Capela das Almas de Santa Catarina (1929).
Não há um motivo oficial para isso ter acontecido tão tarde (afinal, não se esqueça, estamos falando de pelo menos cinco séculos de história até os azulejos migrarem para as fachadas), mas algumas pistas ajudam a entender o fenômeno. “Alguns acontecimentos históricos não permitiram que esse revestimento se desse mais cedo. É o caso das Invasões Francesas, que delapidaram muitos elementos artísticos e arquitetônicos do país, da Revolução Liberal de 1820 e do Cerco do Porto. Além disso, o aparecimento da Primeira República, em 1910, traz um forte sentimento anticlerical, especialmente contra a igreja católica”, explica a historiadora da arte Nisa Félix.
É só com o golpe militar de 1926 que o país passa a vivenciar um novo ambiente político e uma maior tolerância em relação à religião. “A Igreja ganha um novo estímulo e, na tentativa de transmitir aos fieis as histórias de seus santos, começa a revestir suas fachadas com monumentais painéis azulejares. É uma maneira de passar uma mensagem, escolhida a dedo para educar os crentes e lhes transmitir ensinamentos”, afirma a historiadora, que escreveu um Guia do Azulejo no Porto.
Em sua pesquisa, Nisa percorreu igrejas, museus, bibliotecas e edifícios de toda a cidade para estudar a evolução cronológica e iconográfica da azulejaria no Porto. E descobriu algumas curiosidades sobre essa história. “Pouca gente sabe, por exemplo, que o conjunto azulejar que está no Museu Nacional Soares dos Reis não fazia parte do edifício original, tendo sido colocado ali depois da expulsão das ordens religiosas de Portugal, em 1834”, conta.
Outra coisa que chamou a atenção da historiadora foi a quantidade de painéis publicitários em azulejos que ainda existem no Porto. “Entre 1910 e 1920 assistiu-se à abertura de inúmeros estabelecimentos comerciais, como cafés e padarias. De forma a cativar o público e a publicitar os seus produtos, estas lojas receberam decorações exteriores e interiores em azulejo, sendo a maioria delas desenhadas exclusivamente para dar resposta a encomendas particulares”. Alguns exemplos são a Pérola do Bolhão (na rua Formosa), o Grande Bazar do Porto (na rua Santa Catarina) e os Albergues Noturnos do Porto (na rua Mártires da Liberdade).
Relevo: mais um patrimônio azulejar do Norte de Portugal
O norte do país abriga um outro fenômeno exclusivo dessa região: só aqui é possível encontrar os azulejos em relevo, tão comuns nas fachadas do Porto. As fábricas de Massarelos, Devesas e Carvalhinho foram as mais importantes para consolidar essa tradição, introduzindo no país novas técnicas de produção industrial.
Alguns exemplares estão guardados no Banco de Materiais da Câmara do Porto, instalado no Palacete Viscondes de Balsemão. Azulejos, ferros, estuques e outros materiais são recolhidos de edifícios degradados ou demolidos e armazenados ali. Além da reserva museológica, o local cumpre outra função importante: a devolução destes azulejos para a cidade. Qualquer morador que reforme a fachada de sua casa pode recorrer ao Banco de Materiais que, se tiver uma sobra de azulejos da mesma tipologia, os fornece gratuitamente. É uma iniciativa bem interessante e, o melhor de tudo, está aberta à visitação pública. Para quem se interessa pela história dos azulejos na cidade, definitivamente é um passeio imperdível.
Mas não é o único. A estação São Bento, a Biblioteca Municipal, as igrejas de Santo Antônio dos Congregados e de Santo Idelfonso e a Capela das Almas de Santa Catarina também são pontos obrigatórios para entender a importância dos azulejos na formação da identidade do Porto. Confira em nosso roteiro e, da próxima vez que parar para uma foto, dedique um tempinho para apreciar esse patrimônio arquitetônico da cidade.